Pressentimento: pinturas entre mundos
Sabrina Leal 

“O ambiente é a alma das coisas. Cada coisa tem uma expressão própria, essa expressão vem-lhe de fora. Cada coisa é a intersecção de três linhas, e essas linhas formam essa coisa: uma quantidade de matéria, o modo como interpretamos, e o ambiente em que está”

(Trecho 58)
– Fernando Pessoa1

Existe um momento complexo na criação artística que é saber quando uma obra está terminada. É nessa resposta, ao saber quando parar, que descobre-se que está consumado os aspectos físicos da dimensão da intuição. A obra nas possíveis interrelações (luz, cor, forma, som, coisas, movimentos, sensações) nas quais se insere no mundo concreto, parece diminuir a distância entre a imaginação e a busca de sentido. Quando finalizada, não é o fim, mas a possibilidade de começar a mudar de alma. Há artistas que, em paralelo ao fazer, descrevem as motivações, o processo e as verificações da análise da obra feita, mas também há situações em que estão totalmente entregues ao desconhecido, tateando o indizível. Nesse contexto, está ‘Pressentimento’ mostra individual da artista Amanda Fahur (1998).

Então, buscarei separar o que podemos explicar (agora), do que à luz do acontecimento a tentativa de comentar a “coisa-obra” já está sujeita a ser falha, e com toda a sorte, virá a ser atualizada por quem se aventurar a correr o mesmo risco, tendo a favor mais tempo de vida dessas obras no mundo. A exposição muitas vezes é o fato que inaugura a circulação, o deslocamento da esfera da intimidade da intuição e do ateliê para o espaço público, acrescida de camadas invisíveis dos processos a que foi submetida. Pensando nessas camadas ocultas, fui tomada pela ideia de sugerir à artista que criasse digitalmente a “playlist”2 de músicas dessa fase.

A trilha sonora está para todas as outras formas de registro, assim como tudo o que orbita o que não é a obra, são apenas peças de um quebra-cabeça para a percepção e a memória. Ações que são rastros dos ambientes onde as coisas passaram. Escrever sobre o início de um caminho absolutamente novo na produção de uma artista exige grande responsabilidade. A tarefa é encarar na devida perspectiva os desafios e os impactos de compartilhar impressões; descobrir como descrever algo em transição sem o peso de influenciar em uma única visão. Da nossa convivênciade de dois anos de trabalho em um programa de cooperação crítica curatorial (CoCRICU), desse “terreno comum” de trocas, estão amparadas algumas questões sobre a trajetória da artista e as obras escolhidas para a exposição. As aproximações “com precedentes artísticos muito admirados”, farei cuidadosamente, atenta a não cometer o erro que o crítico Harold Rosenberg (1906-1978) aponta no “Novo como valor”3 (1964), o uso desse recurso apenas para forçar valores, suprimindo a confusão e o conflito inerente ao novo. Infelizmente, ainda hoje uma prática.

Na minha experiência, algumas circunstâncias diante da natureza e de obras artísticas no plural me remeteram à reação da personagem “Ellie” (Jodie Foster) no filme de ficção científica “Contato” (1997), que em viagem espacial, após atravessar canais interdimensionais, se depara com uma paisagem no espaço sideral e diz:

ELLIE
“It’s beautiful. It’s beautiful.
I keep saying that but I can’t...
My mind can’t... words...
should’ve sent a poet.
I’m a poet and don’t know it...”
4

Emocionada avistando uma galáxia5, um evento celestial, fica repetindo as mesmas palavras, sem encontrar aquelas que correspondem a como poderia descrever o que vê. Pensa em voz alta que deveriam ter enviado um poeta e ao mesmo tempo se reconhece como esse ser que sente, mesmo sem saber como compartilhar as suas sensações diante do novo – do que ainda não é possível traduzir. Esse é o meu sentimento ao apresentar as obras “Três corpos de mãos e pernas dadas”, “Gota”, “Fica em pé sem cair”, “Estou perdendo muitos fios”, “Processo interno de produção de uma gota de vidro”, “Luta, O outro eu” e “Marca de Nascença” da série “Respira bem fundo até eu dizer para”; e “Ovo II” uma “pintura investigação”. Talvez só na poesia possa existir correspondência com essas obras sem que ao escolher uma ou outra palavra isso apenas possa confiná-las a um ou outro modo de olhar.

Então, esse ensaio dedica-se a convidar a olhar junto alguns acontecimentos e impressões, sem tentar desmistificar ou explicar a tensão entre o mundo real e o mundo imaginário, a realidade concreta e a sensível. Estamos diante de mais futuro das obras do que passado, precisamos de tempo e confio que outras oportunidades virão para que cada obra revele individualmente suas qualidades simbólicas ou traduzíveis. A seleção das obras para a mostra “Pressentimento” marca o ponto de convergência entre as experiências anteriores de Amanda Fahur e que fortalecem sua atual base visual em formação. Embora existam outras pesquisas simultâneas em sua produção, essa é a que mais se distingue na busca pela inovação de linguagem para o indizível, resultado de seis anos regulares de esforço e dedicação às artes.

Antes de avançar, sinalizarei algumas características que me chamam atenção no caminho das “experiências anteriores”. De 2016 a 2020, a artista produziu três séries de obras, onde foi do exercício da pintura de observação de janelas a outras visualidades com maior grau de abstração das formas. Em “Janela em Janela” (2016-2018) inspirou-se em sua coleção de fotografias para criar a primeira pintura usando tinta acrílica sobre bloco de concreto aparente. A partir da obra “Janela em Concreto” (2016), desenvolveu uma série de pinturas em tons terrosos, rosas, azuis esverdeados e outras combinações de cores sobre tela; formas fragmentadas, estilhaçadas, cortadas pelas linhas retas e curvas. Destacam-se os efeitos de sombras, luz e reflexos em “Janela em Janela V” (2018). Na sequência, trabalhou na série “Sistemática” (2019), formas geométricas em um espaço que parece transbordar para fora do papel conexões industriais de circuitos fantásticos. Os vermelhos e suas variações, principalmente o rosa, sobressaem aos azuis, ocres e amarelos. Uma passagem rápida neste universo que inclui a aquarela que dá título à pesquisa e outras obras, como “Engaste” (2020) pintura que integra a coleção independente de micro-formatos do “Ar: Acervo Rotativo”, projeto do artista e curador Laerte Ramos. Essa série, a artista considera um “entre”, por não ter tido continuidade, mas observando detalhes nas junções de “Sistemática”, podemos reconhecer formas que irão se repetir em “Pausas”; que considero determinante no desenvolvimento dos novos processos de criação.

Em “Pausas” (2020), há uma explosão de criação de ícones, índices e formas orgânicas, a maioria suspensas e conectadas em um espaço horizontal retangular, como se a organização dos elementos visuais fosse um “painel de ferramentas”. Nessa série, ainda há elementos figurativos, mas a artista deu vazão a composição de paisagens repletas de formas distorcidas, divididas entre as irreconhecíveis e as que podem ser intuídas - como gota, corrente, bengala, escada, osso, ampulheta, ornamento, dentre outras. Objetos que parecem ter saído das histórias, do quintal e das memórias de infância6 do poeta Manoel de Barros (1916-2014). Em analogia ao poeta que “escovava palavras”7, a artista “escova imagens”. Do mesmo período, são as peças de modelagem com acrílica sobre massa adesiva e alumínio. Tanto a forma final como os degradês de cor azul, verde, rosa, amarelo e lilás, mostram-se mais próximos do futuro, do que ainda viria a se manifestar.

Como se já tivesse encontrado no tridimensional os seres que ainda não tinham se revelado na pintura, um exemplo comparado existe entre a escultura “Pescador” (2020), um fino corpo alongado e retorcido, e a pintura “Luta, O outro eu” (2021), com dois corpos alongados frente a frente. Esse ser ou corpo azul de luz vem se transformando desde “Janela em Janela VII” (2018). Na busca por novas descobertas, a base dos exercícios de ampliação do gesto foram e são os desenhos em cadernos, desenhos que são projetos de obras, desenhos originais - entregando-se ao automatismo, liberando cada vez mais a criação do
impulso natural da razão em determinar um resultado. É como se dissesse ao cérebro: me interessa o que ainda não sei. Um método ou sistema de trabalho em desenvolvimento contínuo. O controle existe no segundo movimento, na ação de transpor a imagem para outras linguagens. Nesse período de mudanças pictóricas e materiais, tem grande influência o início do uso da tinta à óleo e as aulas de cerâmica.

Entre 2021 e 2022, a artista aprofundou o interesse pelo o que não pertence à realidade, os elementos da ficção e da fantasia que coleta de suas imagens mentais. Intensificou a abstração das formas orgânicas, assim como a livre criação de novos seres de um mundo alternativo, dando-lhes vida em camadas a cada nova pintura. Desse período são as obras expostas em “Pressentimento”. Há outra relação dos elementos no espaço construído, nota-se a repetição de pequenos símbolos da explosão ocorrida em “Pausas”, mas agora agigantados em uma espécie de efeito “Zoom”, ou como tenho assimilado – pinturas de um roteiro fantástico onde vemos excertos imagéticos de personagens, tempo e espaço que criam acontecimentos entre mundos.

Embora não tenha impacto direto na construção dos elementos e símbolos dessas obras, são influências da artista os livros de literatura fantástica, em especial da Clarice Lispector; assim como escritos da artista Fayga Ostrower sobre “O Olhar”, o conceito de “Atmosferas” do arquiteto Peter Zumthor, e na pintura, a produção de Tamara de Lempicka (as cores) e Leonora Carrington (as palavras). Incluirei aqui um nome que tem sido associado à produção recente, mas não era uma influência da artista até ser recorrentemente citado. No início do programa de cooperação crítica e curatorial (2020), a artista Georgia O’Keeffe (1887-1986) também fez parte da lista de possíveis ascendências, um exercício que pratico de imaginar a ancestralidade artística ou de qual ou quais árvore(s) genealógicas um(a) artista pode fazer parte e sua produção, mas essas aproximações podem ser perigosas ou forçadas sem intervalo crítico.

Dois anos depois, apesar de ainda ser precoce qualquer associação, reconheço que na série “Respira bem fundo até dizer para”, há alguns elementos como a abstração das formas, as linhas fluídas, os tons de rosas, lilás e azuis, que podem evocar memórias de obras de O’Keeffe. Em especial vejo apenas nuances de “parentesco” na obra “Music, Pink and Blue No. 2” (1918), do momento em que a artista também buscava liberar a produção da representação da realidade, do verbal, da explicação, e inspirou-se na música. Nesse sentido podemos encontrar afinidades, em começos artísticos onde há uma forte conexão nas motivações e criação de linguagem para o indizível. No mais, basta olhar a linha do tempo de produção de ambas as artistas, que não só pelo período (seis anos comparados a quase oitenta e cinco) e outras características formais, que será fácil perceber mais diferenças do que semelhanças.

E por fim, a palavra “Pressentimento”, que significa sentir o que está para acontecer sem saber ao certo o que está por vir, foi escolhida como título para refletir em como o sentir precede a razão. E que muitas vezes o desejo artístico que impulsiona à realização parte desse estado de não-saber, e é preciso coragem para processos onde o fazer move-se pela intuição. Na exposição, as obras são dessa fase de duelo interior, que levou a descoberta sobre como transitar entre mundos (imaginário e real) e a manifestá-los no espaço físico.

“Nada se encontra ao tempo nascido e perfeito”.8

Pressentimento
Ação ou efeito de pressentir. Sentimento antecipado. Ter o pressentimento de prever. Perceber. Sentir ao longe ou antes de ver. Pressagiar. Sentimento instintivo do que há de suceder. Ouvir (ao longe ou antes de ver). Intuição.
(Fonte: colagem de vários dicionários.)

NOTAS
1. PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego: composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Organização Richard Zenith. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p.88.

2. Playlist da exposição “Pressentimento”. Disponível em: <playlist/6sz8NepAwVjkWS20kxiM8H?si=zvMrkDYiSQqExgeTtEuqGA&nd=> e deezer.page.link/csAtVmLFnkYCSqto8>.

3. ROSENBERG, Harold. O novo como valor. In: ______. O Objeto Ansioso. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004. p. 229-239.

4. Excerto do roteiro do filme “Contato”, 1997. Disponível em: <watch?app=desktop&v=3deNVM3EWIc> . O filme se baseia no livro homônimo do cientista e astrônomo Carl Sagan (1934-1996) publicado em 1985.

5. Cena do filme “Contato” (1997). Disponível em: <watch?app=desktop&v=3deNVM3EWIc>.

6. BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a Infância. Rio de Janeiro: Gryphus, 2007.

7. BARROS, Manoel. Escova. In: ______. Memórias inventadas: a Infância. Rio de Janeiro: Gryphus, 2007. p. 2.

8. ALBERTI, Leon Battista. Da Pintura. Tradução de Antônio da Silveira Mendonça. Campinas: UNICAMP, 2009. p.140.




Vista da fachada da Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy. 


Vista da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy. 


Vista da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


Vista da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


Vista da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


Vista da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


A artista Amanda Fahur no dia de abertura da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


Dia de abertura da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno, na Fundação de Arte de Ouro Preto - FAOP. Fotografia: Lucas Godoy.


Equipe de produção e execução da exposição, da FAOP, e amigos na abertura da exposição ‘Pressentimento’, Galeria de Arte Nello Nuno. Fotografia: Lucas Godoy.