Este é um texto-invenção, no sentido de que não é uma entrevista estruturada
com roteiro pré-definido, tampouco uma transcrição direta de um único diálogo.
Teve origem em um processo deambulatório e de pensamentos em voz alta entre
a curadora Sabrina Leal e a artista Amanda Fahur durante a criação da exposição
“Pressentimento”, onde abriram algumas gavetas do acervo de memórias dos
últimos dois anos de trabalho no programa de Cooperação Crítica Curatorial
(CoCRICU), não apenas para conversar sobre a exposição, mas o caminho até ela.
“Para além das ideias de certo e errado, existe um campo.
Eu me encontrarei com você lá.”
– Rumi
![]()
Sabrina Leal: Para artistas vivas(os), sinto a possibilidade da realização de uma exposição individual ou coletiva como um rito de passagem, a celebração de marcos. Criar ‘Pressentimento’, nos levou a olhar para algumas experiências na sua trajetória até aqui. Faz sentido destacarmos alguns acontecimentos de 2016, 2020 e 2021?
Amanda Fahur: Sim. Acho que sim.
SL: Vamos começar por aquela aquarela com a escada, funil e o poço que considero uma imagem que diz muito sobre o seu processo mental. Quando me mostrou essa aquarela de 2017, comentamos:
[22/10/2020 14:36:18] Sabrina Leal: essa ideia da escada, funil e um poço, evoluir é se auto-filtrar para voltarmos para nós mesmos?
[22/10/2020 14:47:35] Amanda Fahur: Sim, a pergunta era ‘Como sair do poço?’, e aí o híbrido de funil e luz virava um amigo que me puxava lá de baixo, porque imaginei uma escada para fora que não dava acesso, naquela época algumas coisas ainda não estavam desobstruídas.
AF: Muito tempo após realizar essa aquarela me encontrei com o livro ‘Crônica do pássaro de corda’1 do Haruki Murakami, e nele tem um poço que aparece do começo até o fim da história, acho que na verdade o maior símbolo de toda a jornada do personagem principal Toru Okada é o poço. Como sair dele, porque ele fica preso lá e em algum momento o lugar começa a encher de água. Depois tem um capítulo de tirar o fôlego ‘explicando’ o motivo, com o trecho da personagem May Kasahara:
‘ As lágrimas caíam fazendo barulho na poça branca da luz da lua e eram sugadas, como se originalmente fizessem parte daquela luz. Ao cair, as gotas brilhavam refletindo o luar, como belos cristais. Quando me dei conta, minha sombra também chorava. Eu conseguia ver com clareza a sombra das lágrimas. Você já viu a sombra de uma lágrima, Pássaro de Corda? Não é uma sombra normal, comum. É completamente diferente. (...) Naquela hora pensei que talvez as lágrimas que caíssem da sombra fossem as autênticas, e as que derrubei fossem só a sombra1.'
SL: Desse mesmo período também é a sua primeira série de pinturas e que em 2018 foi aprovada em edital para realizar a sua primeira exposição individual, só exposta em 2020. Poderia ter sido qualquer outro tema, mas você escolheu Janelas. Por que?
AF: Tenho uma coleção de câmeras analógicas e também uma coleção de fotografias de janelas, fui fotografando em algumas viagens e na casa dos meus pais haviam portas muito grandes e iluminadas, que na verdade sempre considerei mais como janelas do que portas. A primeira foto em câmera analógica que fiz foi de uma dessas janelas, da sala de TV. A imagem me interessou muito, e então decidi reproduzir num bloco de concreto que tinha feito recentemente na aula de materiais de construção na faculdade de arquitetura. Aí então continuei.
SL: Em ‘Janela em Janela’ (2016-2018), a tendência de trabalhar a abstração das formas aparece mais como uma intenção, e na sequência tem uma produção que sempre chamei erroneamente de ‘sisteminha’. No texto de ‘Pressentimento’, cito essa série na frase <explorou formas geométricas em um espaço que parece transbordar para fora do papel conexões industriais de circuitos fantásticos> e escrevendo, percebi que os encadeamentos que criou em ‘sisteminha’ ou literalmente as ‘correntes’, abrem para um universo imagético muito amplo que explodirá na fase seguinte. Me parece um preâmbulo da série ‘Pausas’.
AF: Em 2019, fiz obras dessa série, mas acho que foi um entre, uma transição, porque sinto que fiz trabalhos limitados sem uma continuação objetiva dentro deles, foram poucos. Então, busquei um acompanhamento artístico para avançar em algumas questões. Cheguei até o Stephan Doitschinoff durante a pandemia, ele abriu em formato online o curso de acompanhamento de processos artísticos que dava no MAM - SP. Nesse momento não compreendia a dimensão de nada, mas sentia que me mostraria as coisas que queria saber. Quando vi o trabalho “Palma Votiva”, soube que ele entenderia onde gostaria de chegar. Mas ainda assim, sem a dimensão do espaço e do quanto me dedicaria a partir disso.
SL: Já estávamos de certa forma conectadas sem saber. ‘Palma Votiva’ (um ex-voto no formato de mão feito de latão e incrustado com símbolos em alto relevo), a obra que chamou a sua atenção, é um dos núcleos da instalação que se chama ‘Interventu’ e foi a minha primeira experiência de cooperação com o Stephan Doitschinoff em 2016. Essa instalação foi comissionada e exposta em 2017, no Irish Museum of Modern Art na exposição ‘As Above, So Below: Portals, Visions, Spirits & Mystics’, uma curadoria impactante da Rachael Thomas2 e co-curadoria do Sam Thorne sobre arte e espiritualidade nos últimos 100 anos. E como foi o acompanhamento? Quais foram as novas descobertas?
AF: Não sabia dessa exposição ‘As above so below’, quero ver tudo. Sobre o acompanhamento, me deu uma noção do que é verdadeiramente uma rotina de trabalho, e do valor do desenho no meu processo. Esse valorizar dos espaços e momentos do meu trabalho, específicos do meu processo, do quanto o desenho no meu trabalho é importante, o que vem depois do desenho, o que é confortável pra mim, testar os horários, o que funciona ou não. Qual o papel de cada coisa antes de chegar no resultado final que até então era a pintura. O valor da técnica, porque eu usava acrílica porque só conhecia mesmo a acrílica. E principalmente, afirmar a minha linguagem dentro da minha própria experiência, o que você veio reforçando depois quando me mostrou ‘Cartas a um jovem poeta’3, do Rilke.
SL: Desviamos um pouco, mas vejo muita beleza nessas aproximações e inquietações. Quando falou que o Stephan te incentivou a desenhar mais, sinto que reconheceu que você também é essencialmente desenhista. A produção artística em outras técnicas descendem desse primeiro movimento, o desenho. E “Cartas a um jovem poeta” foi fundamental na minha compreensão sobre Desejo, em especial sobre produção artística, quais perguntas fazer para continuar ou desistir. Bom, estamos tentando chegar na série ‘Pausas’, que mencionei sentir que “Sistemática” foi um preâmbulo.
AF: Apresentei a série ‘Pausas’ pela primeira vez para um grupo de pessoas quando fiz um curso no Hermes em 2020. São grandes pinturas horizontais alongadas com fundo branco, nas cenas parece que vários elementos caem como uma chuva e a cena paralisou. Todos os elementos estão conectados. Os elementos e símbolos desenvolvidos nessa série foram a primeira experiência com esse resgate da memória e de passagem desses fragmentos de tempo pelo filtro mental imaginativo, a diferença é que em comparação com o agora eu pensava todos os símbolos de uma vez, nessas grandes paisagens ficcionais. No presente consigo me debruçar de forma mais aprofundada e menos ansiosa em cada parte do todo. Mas é aquilo que sempre conversamos e que partiu dessa série, ‘cada pequena parte é uma parte do todo’. Nesse momento algo foi se transformando em menos controlado e mais orgânico também, a necessidade de conexões excessivas entre os elementos cessou um pouco.
SL: “Caem como uma chuva e a cena paralisou”. No texto de ‘Pressentimento’, escrevi o seguinte sobre ‘Pausas’ <foi determinanteno desenvolvimento de novos processos de criação. Nessa série, ainda há elementos figurativos, mas a artista deu vazão acomposição de paisagens oníricas repleta de formas distorcidas, divididas entre as irreconhecíveis e as que podem ser intuídas -como gota, corrente, bengala, escada, osso, ampulheta, ornamento, dentre outras>.
AF: Aí entra aquela frase que uso muito: ‘Respira bem fundo até eu dizer para’, ela vem de uma convivência frequente com o desconforto, ouço essa frase a cada seis meses. Tenho que conviver com essa sistemática. Mas agora consigo ver objetivamente esse sistema nas fases de trabalho. Com esses termos que venho utilizando e vão delineando cada etapa de construção de processo criativo, de organização mental. Essas etapas que eu inventei.
SL: Quando começamos a trabalhar em 2020, me lembro de fazer muitas perguntas sobre laboratório, tubos de ensaio. Aí você contou sobre a inspiração para a frase ‘respira bem fundo até eu dizer para’. Esses paralelos entre sistemas, me parece ter ressonância com a sua natureza para inventá-los. Tem um grande algoritmo aí dentro que recebe informações e já transforma tudo em gráfico. Para mim o mistério está em como você alterna em segundos entre esses dois mundos, de dados tão concretos aos simbólicos e os manifesta no mundo real. O universo dessas imagens é onírico, mas a chuva de criação de elementos acontece de olhos abertos, são memórias de sonhos?
AF: Não vem dos sonhos, gosto de pensar que me comunico com os símbolos na camada do real e mental, mas que o onírico surge na relação entre essas duas coisas. Pensar nos ‘olhos abertos’ me faz lembrar algumas partes do livro ‘No Caminho de Swann’4, do Proust. Acredito muito no modo como ele descreve as experiências e no quanto essa maneira de olhar para o cotidiano reflete na valorização dos elementos presentes daquele momento. Daí a necessidade de transformá-los em algo novo, ou não.
SL: Estou sempre estudando um pouco sobre a influência dos sonhos na produção artística, por isso perguntei. Em 2008, quando li ‘Em águas profundas’5 do David Lynch, descobri que ele uma única vez usou um sonho para resolver um ‘problema’ em um filme. Não é dos sonhos que ele ‘pesca ideias’, uma das práticas que ele diz ter influência é a meditação. Esse livro é uma combinação de autobiografia, criatividade e espiritualidade, vale a pena ler. Você finalizou Hermes, o processo com o Stephan, e foi aí que a gente se conheceu?
AF: Sim, me encontrei com pessoas e métodos de trabalho muito diferentes, e escolhi onde precisaria estar, onde sentia maior afinidade. Aí iniciamos nossa conversa, e foi algo como amor à primeira vista. Reconheço em mim hoje o quanto valorizo métodos de trabalho e um trabalho muito bem feito. Você apareceu com um dossiê sobre a minha pintura na nossa primeira conversa, dizendo coisas que faziam todo o sentido ainda que eu não conseguisse formalizar em palavras. E me trouxe um milhão de referências literárias que utilizei durante esse ano e o ano seguinte, como ‘Escritos sobre arte’6 do Baudelaire, 'Cartas a um jovem poeta' e ‘Rodin’7, do Rilke, e o volume ‘O paralelo das artes’8 da coleção ‘A pintura’. Foi bonito, não me esqueço.
“Para além das ideias de certo e errado, existe um campo.
Eu me encontrarei com você lá.”
– Rumi

Sabrina Leal: Para artistas vivas(os), sinto a possibilidade da realização de uma exposição individual ou coletiva como um rito de passagem, a celebração de marcos. Criar ‘Pressentimento’, nos levou a olhar para algumas experiências na sua trajetória até aqui. Faz sentido destacarmos alguns acontecimentos de 2016, 2020 e 2021?
Amanda Fahur: Sim. Acho que sim.
SL: Vamos começar por aquela aquarela com a escada, funil e o poço que considero uma imagem que diz muito sobre o seu processo mental. Quando me mostrou essa aquarela de 2017, comentamos:
[22/10/2020 14:36:18] Sabrina Leal: essa ideia da escada, funil e um poço, evoluir é se auto-filtrar para voltarmos para nós mesmos?
[22/10/2020 14:47:35] Amanda Fahur: Sim, a pergunta era ‘Como sair do poço?’, e aí o híbrido de funil e luz virava um amigo que me puxava lá de baixo, porque imaginei uma escada para fora que não dava acesso, naquela época algumas coisas ainda não estavam desobstruídas.
AF: Muito tempo após realizar essa aquarela me encontrei com o livro ‘Crônica do pássaro de corda’1 do Haruki Murakami, e nele tem um poço que aparece do começo até o fim da história, acho que na verdade o maior símbolo de toda a jornada do personagem principal Toru Okada é o poço. Como sair dele, porque ele fica preso lá e em algum momento o lugar começa a encher de água. Depois tem um capítulo de tirar o fôlego ‘explicando’ o motivo, com o trecho da personagem May Kasahara:
‘ As lágrimas caíam fazendo barulho na poça branca da luz da lua e eram sugadas, como se originalmente fizessem parte daquela luz. Ao cair, as gotas brilhavam refletindo o luar, como belos cristais. Quando me dei conta, minha sombra também chorava. Eu conseguia ver com clareza a sombra das lágrimas. Você já viu a sombra de uma lágrima, Pássaro de Corda? Não é uma sombra normal, comum. É completamente diferente. (...) Naquela hora pensei que talvez as lágrimas que caíssem da sombra fossem as autênticas, e as que derrubei fossem só a sombra1.'
SL: Desse mesmo período também é a sua primeira série de pinturas e que em 2018 foi aprovada em edital para realizar a sua primeira exposição individual, só exposta em 2020. Poderia ter sido qualquer outro tema, mas você escolheu Janelas. Por que?
AF: Tenho uma coleção de câmeras analógicas e também uma coleção de fotografias de janelas, fui fotografando em algumas viagens e na casa dos meus pais haviam portas muito grandes e iluminadas, que na verdade sempre considerei mais como janelas do que portas. A primeira foto em câmera analógica que fiz foi de uma dessas janelas, da sala de TV. A imagem me interessou muito, e então decidi reproduzir num bloco de concreto que tinha feito recentemente na aula de materiais de construção na faculdade de arquitetura. Aí então continuei.
SL: Em ‘Janela em Janela’ (2016-2018), a tendência de trabalhar a abstração das formas aparece mais como uma intenção, e na sequência tem uma produção que sempre chamei erroneamente de ‘sisteminha’. No texto de ‘Pressentimento’, cito essa série na frase <explorou formas geométricas em um espaço que parece transbordar para fora do papel conexões industriais de circuitos fantásticos> e escrevendo, percebi que os encadeamentos que criou em ‘sisteminha’ ou literalmente as ‘correntes’, abrem para um universo imagético muito amplo que explodirá na fase seguinte. Me parece um preâmbulo da série ‘Pausas’.
AF: Em 2019, fiz obras dessa série, mas acho que foi um entre, uma transição, porque sinto que fiz trabalhos limitados sem uma continuação objetiva dentro deles, foram poucos. Então, busquei um acompanhamento artístico para avançar em algumas questões. Cheguei até o Stephan Doitschinoff durante a pandemia, ele abriu em formato online o curso de acompanhamento de processos artísticos que dava no MAM - SP. Nesse momento não compreendia a dimensão de nada, mas sentia que me mostraria as coisas que queria saber. Quando vi o trabalho “Palma Votiva”, soube que ele entenderia onde gostaria de chegar. Mas ainda assim, sem a dimensão do espaço e do quanto me dedicaria a partir disso.
SL: Já estávamos de certa forma conectadas sem saber. ‘Palma Votiva’ (um ex-voto no formato de mão feito de latão e incrustado com símbolos em alto relevo), a obra que chamou a sua atenção, é um dos núcleos da instalação que se chama ‘Interventu’ e foi a minha primeira experiência de cooperação com o Stephan Doitschinoff em 2016. Essa instalação foi comissionada e exposta em 2017, no Irish Museum of Modern Art na exposição ‘As Above, So Below: Portals, Visions, Spirits & Mystics’, uma curadoria impactante da Rachael Thomas2 e co-curadoria do Sam Thorne sobre arte e espiritualidade nos últimos 100 anos. E como foi o acompanhamento? Quais foram as novas descobertas?
AF: Não sabia dessa exposição ‘As above so below’, quero ver tudo. Sobre o acompanhamento, me deu uma noção do que é verdadeiramente uma rotina de trabalho, e do valor do desenho no meu processo. Esse valorizar dos espaços e momentos do meu trabalho, específicos do meu processo, do quanto o desenho no meu trabalho é importante, o que vem depois do desenho, o que é confortável pra mim, testar os horários, o que funciona ou não. Qual o papel de cada coisa antes de chegar no resultado final que até então era a pintura. O valor da técnica, porque eu usava acrílica porque só conhecia mesmo a acrílica. E principalmente, afirmar a minha linguagem dentro da minha própria experiência, o que você veio reforçando depois quando me mostrou ‘Cartas a um jovem poeta’3, do Rilke.
SL: Desviamos um pouco, mas vejo muita beleza nessas aproximações e inquietações. Quando falou que o Stephan te incentivou a desenhar mais, sinto que reconheceu que você também é essencialmente desenhista. A produção artística em outras técnicas descendem desse primeiro movimento, o desenho. E “Cartas a um jovem poeta” foi fundamental na minha compreensão sobre Desejo, em especial sobre produção artística, quais perguntas fazer para continuar ou desistir. Bom, estamos tentando chegar na série ‘Pausas’, que mencionei sentir que “Sistemática” foi um preâmbulo.
AF: Apresentei a série ‘Pausas’ pela primeira vez para um grupo de pessoas quando fiz um curso no Hermes em 2020. São grandes pinturas horizontais alongadas com fundo branco, nas cenas parece que vários elementos caem como uma chuva e a cena paralisou. Todos os elementos estão conectados. Os elementos e símbolos desenvolvidos nessa série foram a primeira experiência com esse resgate da memória e de passagem desses fragmentos de tempo pelo filtro mental imaginativo, a diferença é que em comparação com o agora eu pensava todos os símbolos de uma vez, nessas grandes paisagens ficcionais. No presente consigo me debruçar de forma mais aprofundada e menos ansiosa em cada parte do todo. Mas é aquilo que sempre conversamos e que partiu dessa série, ‘cada pequena parte é uma parte do todo’. Nesse momento algo foi se transformando em menos controlado e mais orgânico também, a necessidade de conexões excessivas entre os elementos cessou um pouco.
SL: “Caem como uma chuva e a cena paralisou”. No texto de ‘Pressentimento’, escrevi o seguinte sobre ‘Pausas’ <foi determinanteno desenvolvimento de novos processos de criação. Nessa série, ainda há elementos figurativos, mas a artista deu vazão acomposição de paisagens oníricas repleta de formas distorcidas, divididas entre as irreconhecíveis e as que podem ser intuídas -como gota, corrente, bengala, escada, osso, ampulheta, ornamento, dentre outras>.
AF: Aí entra aquela frase que uso muito: ‘Respira bem fundo até eu dizer para’, ela vem de uma convivência frequente com o desconforto, ouço essa frase a cada seis meses. Tenho que conviver com essa sistemática. Mas agora consigo ver objetivamente esse sistema nas fases de trabalho. Com esses termos que venho utilizando e vão delineando cada etapa de construção de processo criativo, de organização mental. Essas etapas que eu inventei.
SL: Quando começamos a trabalhar em 2020, me lembro de fazer muitas perguntas sobre laboratório, tubos de ensaio. Aí você contou sobre a inspiração para a frase ‘respira bem fundo até eu dizer para’. Esses paralelos entre sistemas, me parece ter ressonância com a sua natureza para inventá-los. Tem um grande algoritmo aí dentro que recebe informações e já transforma tudo em gráfico. Para mim o mistério está em como você alterna em segundos entre esses dois mundos, de dados tão concretos aos simbólicos e os manifesta no mundo real. O universo dessas imagens é onírico, mas a chuva de criação de elementos acontece de olhos abertos, são memórias de sonhos?
AF: Não vem dos sonhos, gosto de pensar que me comunico com os símbolos na camada do real e mental, mas que o onírico surge na relação entre essas duas coisas. Pensar nos ‘olhos abertos’ me faz lembrar algumas partes do livro ‘No Caminho de Swann’4, do Proust. Acredito muito no modo como ele descreve as experiências e no quanto essa maneira de olhar para o cotidiano reflete na valorização dos elementos presentes daquele momento. Daí a necessidade de transformá-los em algo novo, ou não.
SL: Estou sempre estudando um pouco sobre a influência dos sonhos na produção artística, por isso perguntei. Em 2008, quando li ‘Em águas profundas’5 do David Lynch, descobri que ele uma única vez usou um sonho para resolver um ‘problema’ em um filme. Não é dos sonhos que ele ‘pesca ideias’, uma das práticas que ele diz ter influência é a meditação. Esse livro é uma combinação de autobiografia, criatividade e espiritualidade, vale a pena ler. Você finalizou Hermes, o processo com o Stephan, e foi aí que a gente se conheceu?
AF: Sim, me encontrei com pessoas e métodos de trabalho muito diferentes, e escolhi onde precisaria estar, onde sentia maior afinidade. Aí iniciamos nossa conversa, e foi algo como amor à primeira vista. Reconheço em mim hoje o quanto valorizo métodos de trabalho e um trabalho muito bem feito. Você apareceu com um dossiê sobre a minha pintura na nossa primeira conversa, dizendo coisas que faziam todo o sentido ainda que eu não conseguisse formalizar em palavras. E me trouxe um milhão de referências literárias que utilizei durante esse ano e o ano seguinte, como ‘Escritos sobre arte’6 do Baudelaire, 'Cartas a um jovem poeta' e ‘Rodin’7, do Rilke, e o volume ‘O paralelo das artes’8 da coleção ‘A pintura’. Foi bonito, não me esqueço.
SL: Antes do nosso primeiro encontro, não tinha nada além do seu instagram, na época você ainda não tinha o seu site, (fizemos em 2021), confiei no que vi nas publicações para me preparar para nossa primeira conversa. Especialmente ‘Pausas’, anotei que os elementos me lembravam muito a sensaçãode quando li ‘Memórias Inventadas’9 do Manoel de Barros, em analogia a ‘escovar palavras’, me parecia que você 'escovava imagens’, depois descobri que faz as duas coisas. E duas obras, tinha algo que me levava internamente para a memória de quando vi uma pintura do Morandi pela primeira vez na dOCUMENTA de Kassel 2012 e foi ótimo quando vimos algumas obras dele juntas na Bienal SP 2021. Listei várias mulheres artistas pintoras e alguns poucos homens, que sentia que você poderia ter uma ascendência. Igual pensar em árvore genealógica, mas também como te disse e ainda é legítimo hoje, essas aproximações são muito perigosas e por isso não vou transpor a nossa lista aqui. Falamos sobre acontecimentos de 2016, 2020 e chegamos em 2021. Foi em março de 2021 quando me enviou a primeira imagem de ‘Marca de Nascença’ em processo, a tela esticada na parede, o desenho feito e o início da pintura. Foi nela que pela primeira vez se manifestou o ovo?
AF: O ovo, explicitamente. Mas nas outras obras também tem aquela taça cheia de bolas com aquela gota em cima. Isso eu faço toda hora. E em ‘Marca de Nascença’ apareceu o ovo e essa coisa cíclica - ouroboros. A gota sempre está também. Tem elementos que estão em quase todas as obras, mas que são elementos que foram construídos a partir de junções de símbolos. Símbolos que fui carregando, revisitando memórias, e juntando, chegando nessas formas que repito. E tem símbolos que estão, depois de saber e entender minha identificação, como com o ovo, com maior presença. Penso muito nisso, em valorizar a nossa memória, e também a existente nos processos, em estender o tempo, reservando formas e símbolos recolhidos no cotidiano, no que não pertence à realidade, e juntar tudo. Criar essa outra camada que está conectada às duas, mas acho mesmo que essa outra camada se dá no fazer, no durante, naquilo de inexplicável que motiva o início das coisas e a vontade de realizar, que a gente mesmo às vezes nem sabe. Quando penso em memória penso no arquiteto Peter Zumthor, autor de dois livros que gosto muito: ‘Atmosferas’10 e ‘Pensar Arquitetura’11, ele diz que não há alternativa que faça esvair abagagem do nosso olhar para o mundo.
SL: A literatura é uma influência no seu processo criativo e a forma como ela está associada à sua maneira de produção tem uma precedência, mas não tem uma relação direta com os símbolos. A gente até sempre fala um pouco dessa ordem, porque a primeira autora que você me trouxe não necessariamente foi uma autora de literatura fantástica, foi uma artista, a Fayga Ostrower12 (1920-2001).
AF: Não tem relação direta ou sugere formas, mas a experiência de ler muita literatura fantástica que não tem o apoio de outras ilustrações dá muita margem para a imaginação, para criação de locais. Tenho percebido também um novo padrão de leitura de pequenas enciclopédias que reúnem símbolos. Sobre a Fayga, li o primeiro texto no livro ‘O olhar’, esse livro me acompanha faz um tempo, e o comprei em Minas Gerais em 2019, em Tiradentes. Você também tem um livro assim, não é, com essa mesma relação?
SL: Sim, o ‘Objeto Ansioso’13, do Harold Rosenberg, ‘converso’ muito com esse autor na minha cabeça, em especial sobre ‘O tempo e os valores’. Lendo ‘O Olhar’ que começou a sua relação com a Fayga?
AF: Foi. Comprei esse livro, primeiro me apaixonei pelo nome, abri e vi que eram artistas, arquitetos, pessoas, falando sobre o olhar em todas as esferas. E pensei que precisava possuir esse objeto. Desde então não parei de encontrar relações dentro desse livro, porque pra mim tudo é sobre como olhar as coisas, a abstração que faço é um pouco isso, é resgatar elementos, passar por esse filtro que é a minha cabeça, mas sempre como olhar as coisas. Às vezes olhar algo que está na minha frente, algo que já aconteceu, uma memória, um sonho. Peguei o livro agora e achei o texto, você não vai acreditar no nome: ‘A construção do olhar’.
Trecho e referência:
‘A sensualidade da percepção, que se transforma em espiritualidade. Então estes conteúdos podem ser transmitidos visualmente pelas imagens de arte, e nós os compreenderemos sem precisarmos usar de palavras. É só olhar.’
(O OLHAR. Org. Adauto Novaes. A construção do olhar. OSTROWER, Fayga. 1988. Pg 182.)
SL: Um comentário. Temos uma grande tradição retiniana, de uma hierarquia atribuída teoricamente aos olhos, mas que esse olhar é com todos os sentidos na verdade, com todos os nossos órgãos.
AF: Aquele livro que utilizei no meu TCC, chamado ‘Os olhos da pele’, do Juhani Pallasmaa fala sobre isso, sobre a hierarquização dos sentidos, o olhar que é na verdade corporificado, um intercâmbio entre a aura dos objetos e as nossas próprias emoções.
SL: A partir de ‘Marca de nascença’, na sequência, criou ‘Luta, O outro eu’. E então teve a ideia de uma nova série ’Respira bem fundo até eu dizer para’. Foi o início do uso da tinta a óleo, do formato vertical alongado que agigantou as formas e as distorções em algumas obras. Qual foi o impulso?
AF: Precisava que o material me desse a organicidade das formas que eu estava desenvolvendo. Sentia que a acrílica estava muito plástica e dura e muito contrastante com os desenhos, seres e paisagens criadas.
SL: É dessa fase também uma série de pintura que chama de ‘pinturas de investigação’. O que estava pesquisando e procurando que começou esse método? É diferente do que já vinha fazendo de desenhar, desenhar, desenhar. Nessas pinturas existe outra relação com os materiais.
AF: Pensei nesse termo ‘pintura investigação’ para uma etapa do processo de trabalho. Realizo pinturas menores para entender como seguir para as grandes, mas acredito que todas as etapas conformam trabalhos igualmente importantes, tamanhos não hierarquizam nada. Então dei esse nome pras menores na tentativa de fortalecer sua ação no meio disso tudo. São pinturas onde penso investigar as cores, texturas, tamanhos, funções e ações, de partes menores do todo, que crescem na fase seguinte.
SL: Quando iniciou ‘Três corpos de mãos e pernas dadas’ foi um outro gesto de expansão, algo paralelo a ‘Respira bem fundo até eu dizer para’. Fiquei pensando em como pintou intensamente escadas em séries anteriores e de repente ela foi útil (a real e talvez todas asoutras simbólicas) para o seu corpo alcançar o espaço dessa nova obra. Você pintou mais ou menos de junho a agosto e em outubro que deu o título. Lembro-me que começou a aparecer a palavra ‘uva’ em textos que você estava lendo e me mandava as capturas de tela para compartilhar as ‘coincidências’. Elementos que já existem na série ‘Pausas’ reaparecem, principalmente a gota, a corrente e os ornamentos, mas é outro ‘tratamento’, não encontrei outra palavra. E como estava desenvolvendo tudo simultaneamente, parece que são como se fossem roteiros que estão na sua cabeça e extrai ‘frames’ para contar essas histórias na pintura. Faz algum sentido isso ou é outro caminho?
AF: Um dos textos que li mencionando a uva foio ‘Verde Lagarto Amarelo’14, da Lygia Fagundes Telles, de um livro que gosto muito, ‘Antes do baile verde’. Sim, acho que constantemente trabalho com aproximações e distanciamentos do que estou fazendo. Pequenas pinturas são sempre pequenas partes de um todo que por vezes ainda não sei qual será. Pinturas grandes são essa soma do todo, mas também contribuem para retirada dessas pequenas partes. O processo todo é bem cíclico, a image não aparece resolvida de uma única forma.
SL: Por falar em ‘títulos’, existe um processo de construção, alguns mais diretos como ‘Ovo II’, ‘Gota’, mas outros que são verdadeiros enigmas. Exemplo: Três corpos de mãos e pernas dadas (2021), Estou perdendo muitos fios (2022) e Processo interno de produção de uma gota de vidro (2022). Como é esse processo de criação?
AF: Os títulos para mim funcionam dentro do mesmo método de produção das pinturas, títulos pequenos para o que chamo de ‘pintura investigação’, porque aqui ainda estou aprendendo e compreendendo características do que vai sendo descoberto durante a ação da pintura posterior ao desenho. Mas como é na junção das ‘pinturas investigação’ que se chega nas maiores obras, os grandes títulos funcionam como adicionar palavras na formação de uma frase, ou juntar versos na formação de um poema. Se várias pequenas pinturas formalizam uma grande, sinto que uma só palavra não dá conta, aí entram as frases, como ‘Processo interno de produção de uma gota de vidro’.
SL: Chegamos em ‘Pressentimento’, o rito de passagem onde celebramos um marco na sua produção, de muitos que ainda estão porvir. Um marco também no nosso processo de Cooperação. Quando olhamos a planta da sala da galeria Nello Nuno, você já tinha uma ideia sobre quais obras gostaria de expor, certo? Queria expor os desenhos, por exemplo, mas eu não os via ali. Também não tinha nenhuma ideia ainda, mas o espaço, a porta, as janelas, a luz, aquela configuração me levou a começar pela ‘pintura investigação’. Eu te disse: Vamos de óleo? E você topou. Foi muito intuitivo saber quais obras ‘aproximar’, me inspirei nas fotografias do seu ateliê durante a feitura de algumas delas. Qual é o seu sentimento agora que só falta montar as obras e abrir a exposição?
AF: Sinto muita alegria por conseguir expor esses trabalhos num espaço com tamanha história e importância, ainda estou digerindo e parece que a ficha vai caindo aos poucos, as sensações também vão se encaixando muito devagar. Sou uma pessoa muito emocionada, cada nova pequena coisa que entendo e cada acontecimento é motivo pra comemorar. Esse então. Parecia impossível, até acontecer.
SL: Queria falar sobre tantos outros aspectos, mas ficaria uma conversa infinita. Então, que bom que o sentir precede a razão, nos trouxe até ‘Pressentimento’. Foi muito divertido, essa é a palavra, no sentido do prazer de uma aventura. É impossível traduzir nosso processo ao longo dos dois anos e mesmo agora em específico para a exposição, mas o sentimento é de iminência de festa. Temos um encontro marcado dia 21.10.2022 em Ouro Preto. A playlist você já preparou. Dancemos às obras?
AF: Dancemos as obras.
1. MURAKAMI, Haruki. Crônica do pássaro de corda. Tradução de Eunice Suenaga. Rio de Janeiro: Editora Alfaguara, 2017.
2. THOMAS, Rachael; THORNE, Sam. As Above, So Below: Portals, Visions, Spirits & Mystics. Dublin: Irish Museum of Modern Art, 2017.
3. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2006.
4. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
5. LYNCH, David. Em águas profundas - criatividade e meditação. Tradução de Márcia Frasão. Rio de Janeiro: Gryphus, 2008.
6. BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Org. e tradução de Plìnio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2008.
7. RILKE, Rainer Maria. Rodin. Tradução de Daniela Caldas. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
8. LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura. Textos essenciais. Vol.7: O paralelo das artes. São Paulo: Ed. 34, 2004.
9. BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a Infância. Rio de Janeiro: Gryphus, 2007.
10. ZUMTHOR, Peter. Atmosferas. Tradução de Astrid Grabow. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SL, 2005.
11. ZUMTHOR, Peter. Pensar Arquitetura. Tradução de Astrid Grabow. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SL, 2005.
12. OSTROWER, Fayga. A Construção do olhar. In: NOVAES, Adauto (Org.) O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
13. ROSENBERG, Harold. O Objeto Ansioso. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
14. FAGUNDES TELLES, Lygia. Os contos. Antes do baile verde: Verde Lagarto Amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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AF: O ovo, explicitamente. Mas nas outras obras também tem aquela taça cheia de bolas com aquela gota em cima. Isso eu faço toda hora. E em ‘Marca de Nascença’ apareceu o ovo e essa coisa cíclica - ouroboros. A gota sempre está também. Tem elementos que estão em quase todas as obras, mas que são elementos que foram construídos a partir de junções de símbolos. Símbolos que fui carregando, revisitando memórias, e juntando, chegando nessas formas que repito. E tem símbolos que estão, depois de saber e entender minha identificação, como com o ovo, com maior presença. Penso muito nisso, em valorizar a nossa memória, e também a existente nos processos, em estender o tempo, reservando formas e símbolos recolhidos no cotidiano, no que não pertence à realidade, e juntar tudo. Criar essa outra camada que está conectada às duas, mas acho mesmo que essa outra camada se dá no fazer, no durante, naquilo de inexplicável que motiva o início das coisas e a vontade de realizar, que a gente mesmo às vezes nem sabe. Quando penso em memória penso no arquiteto Peter Zumthor, autor de dois livros que gosto muito: ‘Atmosferas’10 e ‘Pensar Arquitetura’11, ele diz que não há alternativa que faça esvair abagagem do nosso olhar para o mundo.
SL: A literatura é uma influência no seu processo criativo e a forma como ela está associada à sua maneira de produção tem uma precedência, mas não tem uma relação direta com os símbolos. A gente até sempre fala um pouco dessa ordem, porque a primeira autora que você me trouxe não necessariamente foi uma autora de literatura fantástica, foi uma artista, a Fayga Ostrower12 (1920-2001).
AF: Não tem relação direta ou sugere formas, mas a experiência de ler muita literatura fantástica que não tem o apoio de outras ilustrações dá muita margem para a imaginação, para criação de locais. Tenho percebido também um novo padrão de leitura de pequenas enciclopédias que reúnem símbolos. Sobre a Fayga, li o primeiro texto no livro ‘O olhar’, esse livro me acompanha faz um tempo, e o comprei em Minas Gerais em 2019, em Tiradentes. Você também tem um livro assim, não é, com essa mesma relação?
SL: Sim, o ‘Objeto Ansioso’13, do Harold Rosenberg, ‘converso’ muito com esse autor na minha cabeça, em especial sobre ‘O tempo e os valores’. Lendo ‘O Olhar’ que começou a sua relação com a Fayga?
AF: Foi. Comprei esse livro, primeiro me apaixonei pelo nome, abri e vi que eram artistas, arquitetos, pessoas, falando sobre o olhar em todas as esferas. E pensei que precisava possuir esse objeto. Desde então não parei de encontrar relações dentro desse livro, porque pra mim tudo é sobre como olhar as coisas, a abstração que faço é um pouco isso, é resgatar elementos, passar por esse filtro que é a minha cabeça, mas sempre como olhar as coisas. Às vezes olhar algo que está na minha frente, algo que já aconteceu, uma memória, um sonho. Peguei o livro agora e achei o texto, você não vai acreditar no nome: ‘A construção do olhar’.
Trecho e referência:
‘A sensualidade da percepção, que se transforma em espiritualidade. Então estes conteúdos podem ser transmitidos visualmente pelas imagens de arte, e nós os compreenderemos sem precisarmos usar de palavras. É só olhar.’
(O OLHAR. Org. Adauto Novaes. A construção do olhar. OSTROWER, Fayga. 1988. Pg 182.)
SL: Um comentário. Temos uma grande tradição retiniana, de uma hierarquia atribuída teoricamente aos olhos, mas que esse olhar é com todos os sentidos na verdade, com todos os nossos órgãos.
AF: Aquele livro que utilizei no meu TCC, chamado ‘Os olhos da pele’, do Juhani Pallasmaa fala sobre isso, sobre a hierarquização dos sentidos, o olhar que é na verdade corporificado, um intercâmbio entre a aura dos objetos e as nossas próprias emoções.
SL: A partir de ‘Marca de nascença’, na sequência, criou ‘Luta, O outro eu’. E então teve a ideia de uma nova série ’Respira bem fundo até eu dizer para’. Foi o início do uso da tinta a óleo, do formato vertical alongado que agigantou as formas e as distorções em algumas obras. Qual foi o impulso?
AF: Precisava que o material me desse a organicidade das formas que eu estava desenvolvendo. Sentia que a acrílica estava muito plástica e dura e muito contrastante com os desenhos, seres e paisagens criadas.
SL: É dessa fase também uma série de pintura que chama de ‘pinturas de investigação’. O que estava pesquisando e procurando que começou esse método? É diferente do que já vinha fazendo de desenhar, desenhar, desenhar. Nessas pinturas existe outra relação com os materiais.
AF: Pensei nesse termo ‘pintura investigação’ para uma etapa do processo de trabalho. Realizo pinturas menores para entender como seguir para as grandes, mas acredito que todas as etapas conformam trabalhos igualmente importantes, tamanhos não hierarquizam nada. Então dei esse nome pras menores na tentativa de fortalecer sua ação no meio disso tudo. São pinturas onde penso investigar as cores, texturas, tamanhos, funções e ações, de partes menores do todo, que crescem na fase seguinte.
SL: Quando iniciou ‘Três corpos de mãos e pernas dadas’ foi um outro gesto de expansão, algo paralelo a ‘Respira bem fundo até eu dizer para’. Fiquei pensando em como pintou intensamente escadas em séries anteriores e de repente ela foi útil (a real e talvez todas asoutras simbólicas) para o seu corpo alcançar o espaço dessa nova obra. Você pintou mais ou menos de junho a agosto e em outubro que deu o título. Lembro-me que começou a aparecer a palavra ‘uva’ em textos que você estava lendo e me mandava as capturas de tela para compartilhar as ‘coincidências’. Elementos que já existem na série ‘Pausas’ reaparecem, principalmente a gota, a corrente e os ornamentos, mas é outro ‘tratamento’, não encontrei outra palavra. E como estava desenvolvendo tudo simultaneamente, parece que são como se fossem roteiros que estão na sua cabeça e extrai ‘frames’ para contar essas histórias na pintura. Faz algum sentido isso ou é outro caminho?
AF: Um dos textos que li mencionando a uva foio ‘Verde Lagarto Amarelo’14, da Lygia Fagundes Telles, de um livro que gosto muito, ‘Antes do baile verde’. Sim, acho que constantemente trabalho com aproximações e distanciamentos do que estou fazendo. Pequenas pinturas são sempre pequenas partes de um todo que por vezes ainda não sei qual será. Pinturas grandes são essa soma do todo, mas também contribuem para retirada dessas pequenas partes. O processo todo é bem cíclico, a image não aparece resolvida de uma única forma.
SL: Por falar em ‘títulos’, existe um processo de construção, alguns mais diretos como ‘Ovo II’, ‘Gota’, mas outros que são verdadeiros enigmas. Exemplo: Três corpos de mãos e pernas dadas (2021), Estou perdendo muitos fios (2022) e Processo interno de produção de uma gota de vidro (2022). Como é esse processo de criação?
AF: Os títulos para mim funcionam dentro do mesmo método de produção das pinturas, títulos pequenos para o que chamo de ‘pintura investigação’, porque aqui ainda estou aprendendo e compreendendo características do que vai sendo descoberto durante a ação da pintura posterior ao desenho. Mas como é na junção das ‘pinturas investigação’ que se chega nas maiores obras, os grandes títulos funcionam como adicionar palavras na formação de uma frase, ou juntar versos na formação de um poema. Se várias pequenas pinturas formalizam uma grande, sinto que uma só palavra não dá conta, aí entram as frases, como ‘Processo interno de produção de uma gota de vidro’.
SL: Chegamos em ‘Pressentimento’, o rito de passagem onde celebramos um marco na sua produção, de muitos que ainda estão porvir. Um marco também no nosso processo de Cooperação. Quando olhamos a planta da sala da galeria Nello Nuno, você já tinha uma ideia sobre quais obras gostaria de expor, certo? Queria expor os desenhos, por exemplo, mas eu não os via ali. Também não tinha nenhuma ideia ainda, mas o espaço, a porta, as janelas, a luz, aquela configuração me levou a começar pela ‘pintura investigação’. Eu te disse: Vamos de óleo? E você topou. Foi muito intuitivo saber quais obras ‘aproximar’, me inspirei nas fotografias do seu ateliê durante a feitura de algumas delas. Qual é o seu sentimento agora que só falta montar as obras e abrir a exposição?
AF: Sinto muita alegria por conseguir expor esses trabalhos num espaço com tamanha história e importância, ainda estou digerindo e parece que a ficha vai caindo aos poucos, as sensações também vão se encaixando muito devagar. Sou uma pessoa muito emocionada, cada nova pequena coisa que entendo e cada acontecimento é motivo pra comemorar. Esse então. Parecia impossível, até acontecer.
SL: Queria falar sobre tantos outros aspectos, mas ficaria uma conversa infinita. Então, que bom que o sentir precede a razão, nos trouxe até ‘Pressentimento’. Foi muito divertido, essa é a palavra, no sentido do prazer de uma aventura. É impossível traduzir nosso processo ao longo dos dois anos e mesmo agora em específico para a exposição, mas o sentimento é de iminência de festa. Temos um encontro marcado dia 21.10.2022 em Ouro Preto. A playlist você já preparou. Dancemos às obras?
AF: Dancemos as obras.
1. MURAKAMI, Haruki. Crônica do pássaro de corda. Tradução de Eunice Suenaga. Rio de Janeiro: Editora Alfaguara, 2017.
2. THOMAS, Rachael; THORNE, Sam. As Above, So Below: Portals, Visions, Spirits & Mystics. Dublin: Irish Museum of Modern Art, 2017.
3. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Süssekind. Porto Alegre: L&PM, 2006.
4. PROUST, Marcel. No caminho de Swann. Tradução de Fernando Py. Rio de Janeiro: O Globo; São Paulo: Folha de São Paulo, 2003.
5. LYNCH, David. Em águas profundas - criatividade e meditação. Tradução de Márcia Frasão. Rio de Janeiro: Gryphus, 2008.
6. BAUDELAIRE, Charles. Escritos sobre arte. Org. e tradução de Plìnio Augusto Coêlho. São Paulo: Hedra, 2008.
7. RILKE, Rainer Maria. Rodin. Tradução de Daniela Caldas. Rio de Janeiro: Relume Dumara, 1995.
8. LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). A pintura. Textos essenciais. Vol.7: O paralelo das artes. São Paulo: Ed. 34, 2004.
9. BARROS, Manoel. Memórias inventadas: a Infância. Rio de Janeiro: Gryphus, 2007.
10. ZUMTHOR, Peter. Atmosferas. Tradução de Astrid Grabow. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SL, 2005.
11. ZUMTHOR, Peter. Pensar Arquitetura. Tradução de Astrid Grabow. Barcelona: Editorial Gustavo Gili SL, 2005.
12. OSTROWER, Fayga. A Construção do olhar. In: NOVAES, Adauto (Org.) O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
13. ROSENBERG, Harold. O Objeto Ansioso. Tradução de Vera Pereira. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
14. FAGUNDES TELLES, Lygia. Os contos. Antes do baile verde: Verde Lagarto Amarelo. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
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